sábado, 23 de julho de 2011

AVALIAÇÃO PSICOPEDAGÓGICA DO DESENHO INFANTIL (PARTE III)




 Para a realização do presente trabalho, contamos com a participação de Ana, de 5 anos. A criança recebeu um kit contendo folhas de papel em branco, diversos lápis de cor de madeira, lápis grafite, borracha e um apontador. Dissemos que ela poderia desenhar o que sentisse vontade. Após alguns minutos, ela começou a rabiscar figuras geométricas nas folhas. Quando solicitada que desenhasse sua família, ela prontamente começou o desenho sem que nenhuma intervenção fosse feita durante a execução.
Apesar de ter à disposição muitos lápis coloridos, a criança utilizou basicamente o lápis grafite, sem a necessidade de uso da borracha que também fazia parte do kit recebido para a tarefa.
Inicialmente, imaginamos que a criança não havia entendido quando pedimos que desenhasse sua família, uma vez que sentimos falta de alguns elementos. Somente ao término da tarefa, quando ela verbalizou que havia terminado, solicitamos que ela explicasse o que havia desenhado.
Para Ana, o pai (desenhado de grafite) e a irmã mais velha (18 anos) estão atrás de uma cortina e estão na chuva. Ela achou que faltava ter desenhado uma sombrinha, mas complementou:
- Eu não sei desenhar isso!
Ana disse que também estava no desenho, apontando onde estava (ao lado do pai, fora da cortina).
Antes de sua verbalização, já podíamos visualizar duas formas femininas (pelo traço que lembra as saias) e uma masculina. Porém, imaginávamos ser seus pais e a própria criança. A criança tem duas irmãs e imaginamos que havia tentado desenhá-las perto de si, sendo uma imagem estereotipada sem membros superiores e inferiores e uma “cabeça” pintada de amarelo. Quando indagamos o que seriam as duas formas, ela sorriu e falou prontamente:
- Um “creme” e o sol!
Percebemos então, na prática, a imensa importância da verbalização do indivíduo examinado, da qual fala Almeida (p.3), para uma avaliação psicopedagógica bem realizada: “a palavra entrou como recurso auxiliar nesse diagnóstico, com ela nos asseguraríamos em relação ao que a criança apresentou no desenho”.
Para Wechsler e Schelini (2002, p.30), “... a criança, ao desenhar a figura humana, estaria expressando seu conceito de ser humano e sua compreensão das características essenciais que compõem o mesmo”. As autoras ainda advertem quanto à influência que os aspectos emocionais tem sobre o desenho.
Nesse ponto de observação, chamou-nos a atenção o fato de que as figuras humanas presentes no desenho de Ana possuem traços diferenciados quanto à simetria e proporcionalidade.
Observando que a irmã possui braços e mãos bem definidos e o pai também apresenta traços que lembram seus braços, indagamos por que não havia desenhado seus próprios braços, e a criança sorrindo respondeu apenas:
- Porque não!
Fernández (1991, p.100), discorrendo sobre as relações familiares, atesta que
Atribuir a uma pessoa um lugar dentro de um grupo familiar, a induz a desempenhar este papel. Tal adjudicação de lugar é ignorada pelo conjunto de pessoas que intervêm nesta operação, assim como num contexto hipnótico não se diz ao hipnotizado o que deve ser, mas se lhe assinala o que é, e aí a eficácia do mandato.
Refletindo sobre essa asserção e conhecendo a dinâmica familiar de Ana, ficamos surpresos ao constatar que a mãe “não aparece” na família. São proprietários de uma pequena loja de confecções, na qual trabalham o pai e a irmã mais velha. A mãe nunca vai à loja, pois “não tem cabeça pra isso” (palavras do pai de Ana). A irmã mais velha, que aparece no desenho, apesar da idade tem uma participação ativa em muitas decisões do comércio e da vida familiar e junto ao pai formam o centro gestor do grupo familiar.
Insistimos em indagar o motivo da falta de braços no autodesenho de Ana, ao que a criança limitou-se a sorrir.
Ana, falando sobre seu desenho, ainda faz questão de afirmar que sabe desenhar barcos e pássaros e mostra também que sabe desenhar gato.
Indagada sobre as duas figuras centrais da parte inferior do desenho, ela diz que “são dos pássaros, para eles voarem”.
Fica-nos a impressão de que para Ana, os pássaros não voam porque possuem asas, mas precisam buscá-las fora do próprio corpo. Talvez as pessoas também precisem buscar fora de si os instrumentos necessários para realizarem seu trabalho e Ana ainda não tenha encontrado seu próprio espaço de ação no grupo familiar.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Júlia de Paiva. O desenho livre e a verbalização como recursos diagnósticos do estágio do desenvolvimento do pensamento infantil. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT01/O%20DESENHO%20LIVRE%20E%20A%20VERBALIZAO%20COMO%20RECURSOS%20DIAGNATICOS%20DO%20ESTAGIO%20DO%20DESENVOLVIMENTO%20DO%20PENSAMENTO%20INFANTIL.pdf. Acesso em 01 de março de 2010.
FERNÁNDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada: Abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Porto Alegre: Artmed, 1991.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança: Imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: LTC, 1990.
SILVA, Valdeci Gonçalves da. Teste do desenho: Um espelho da alma. Disponível em: http://www.algosobre.com.br/psicologia/teste-do-desenho-um-espelho-da-alma.html. Acesso em 01 de março de 2010.
WECHSLER, Solange M. e SCHELINI, Patrícia Waltz. Validade do desenho da figura humana para avaliação cognitiva infantil. Rev. Avaliação Psicológica, 2002,1, p.29-38.
WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia Clínica: Uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. 13. Ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

3 comentários:

  1. Olá!!!
    Muito interessante o texto,é incrivel como o desenho transmite o universo da criança...qdo eu era criança desenhava com frequência , a casa, o sol e os membros da minha família de mãos dadas; já meu filho mais novo, costumava desenhar a casa, o sol, os membros da família separadamente, só que cada um com tamanho diferente e eu tinha as pernas mais longas (detalhe: sou baixinha).
    Os respectivos professores avaliaram que meu desenho expressava união familiar e a prof. do meu filho que para ele era uma família feliz, ja que todos tinham sorriso, mas que ele me considerava autoridade pelas pernas longas.Na época eu não trabalhava só cuidava deles, talvez por isso me considerasse assim.

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  2. É algo muito interessante a análise do desenho de alguém. É preciso ter muito cuidado com nossa própria subjetividade. "Suas" pernas alongadas podem ter outros significados. Segundo Campos (O teste do desenho, 2010), uma das características mais comuns de autoridade no desenho da família é o tamanho da cabeça. Mas cada pessoa pode ter suas próprias formas de "demonstrar" as caracaterísticas familiares. O mais importante, como falei no texto é a "escuta" de quem desenhou, além da observação da hora do desenho e, se possível, comparação com outros desenhos de mesma autoria, em outros momentos.

    Bjos, obrigada pela visita!

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  3. Menina, é quase um artigo, tens publicação desses achados?

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